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Relações Objetais, Estruturalismo e Estidade em Medicina Psicossomática

Relações Objetais, Estruturalismo (Lacan, Levi-Strauss, Green) e Estidade (Individuação) em Medicina Psicossomática
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Prof.Dr.Luiz Miller de Paiva
Alina M. A. P. Nogueira da Silva

INTRODUÇÃO

Iniciaremos, sugerindo nova perspectiva na Medicina Psicossomática; daremos a seguir alguns exemplos clínicos para justificar o nosso modo de pensar.

Hipótese:

Propomos uma nova hipótese para a medicina psicossomática. A doença psicossomática seria uma intimidade psicofisiológica celulo-humoral (interioridade) não resolvida (micro-doença), cujo núcleo fundamental estaria constituido por fantasia consciente ou elaborações secundárias de fantasias inconscientes peculiares (individuação ou estidade) ou que faz o indivíduo ser ele mesmo e não o outro e sem o qual deixa de ser ele mesmo, decorrentes de conflitos nas relações objetais, com internalizações de objetos maus em um órgão ou aparelho e subsequentes projeções, causando identificações não satisfatórias (tanáticas). O efeito do objeto mau, por estar inserido em um sistema de relações mutáveis, variam com a estrutura. Esta estidade (internalização por identificação) que faz o indivíduo “estar em seu mundo particular” se daria, principalmente, nos períodos de molde (lactação e ambiente familiar), sendo alicerçada por fatores genéticos e desencadeada por fatores externos (circunstâncias culturais ou sociais).

Para a sua execução, tivemos que recorrer às seguintes fontes:

1. Gestaltismo

2. As novas correntes psico-analíticas

3. Novas correntes fenomenológicas

4. As novas correntes de estruturalismo

5. A filosofia defendida por Duns Scotus

6. A especificidade e as relações objetais

Iremos destacar somente alguns aspectos daquelas correntes que nos pareceram mais ligados ao tema; contudo, sugerimos aos leitores recorrerem aos trabalhos originais para a melhor compreensão, pois ficaria longo e desagradável repisar fatos já conhecidos.

1. Gestaltismo ou Conceito de Medicina Integral

Para se compreender a nossa hipótese torna-se necessário aceitar-se a medicina psicossomática como integral. Estamos com Rof Carballo (1,a,b,c) no valor conjunto dos fatores genéticos, neuro-endócrinos, bioquímicos, psicoanalíticos, antropológicos e sociais; seria uma visão gestáltica da psicossomática (figura-fundo, consciente-inconsciente, fantasia-realidade, orgânico-psíquico, indivíduo-ambiente, etc.).

Nos recentes estudos de medicina psicossomática (2)(3)(4)(5)(6)(7) (8,a,b,c,d,e,f,g,h)(9)(10), não mais separamos mente e corpo, desaparecendo assim a tradicional alternativa entre soma e psyché; existe processo intrincado, zonas do córtex que governam os órgãos e estes se fazem representar no cérebro por hormônios ou enzimas, um dos tantos fatores que mantêm relação contínua entre consciente e inconsciente. É processo recíproco e constante, cujos atributos do corpo ou do psíquismo dependem da maneira de percepção da consciência, tão sutil que só a grosso modo poderiamos dividí-las.

A palavra psicossomática foi criada em sentido de união, até hoje o médico e o estudante, em geral, continuam, colocando o físico em um extremo e psíquismo no outro, como representações separadas e isoladas, tal qual o dualismo cartesiano (3,a) (8,a) (11). Já em trabalhos anteriores (8,a,b,c,d,e,f,g,h) procuramos demonstrar que se nos aprofundarmos nas pesquisas psicanalíticas e bioquímicas não encontraremos separação. Hoje, consideramos psicossomáticas todas as doenças, isto é, admitimos que em infecções exista simultaneamente fator psíquico não desprezível; até admitimos, também, que neurose e psicoses tenham fatores somáticos principalmente imunitários, hormonais e enzimáticos. Sob esta visão, em um paciente neurótico não é raro encontrarmos a personalidade psicótica (12,a,b).

A percepção interna, interssuscepção, desta unidade substancial, unidade que é bem posta em evidência em situações de “stress”, transparece no “simbolismo ou linguagem dos órgãos” (13,a), cuja complexidade por vezes é tanta que lembra a das comunicações psicóticas (14). 

Para a compreensão do sintoma psicossomático, que pode significar uma comunicação psicótica, devemos recorrer aos trabalhos que enfocam as relações objetais**. O mesmo dualismo cartesiano já citado é encontrado ao estudarmos as teorias psicanalíticas das relações objetais. Por este motivo e para melhor compreensão de nossa hipótese, devemos recorrer aos conceitos psicanalíticos que se seguem.

 

** Evoca essencialmente uma relação a alguém; significa, não toda e qualquer coisa conhecida ou querida, mas unicamente aquilo que “está diante” do sujeito com independência deste e ao qual este se deve moldar (15).

2. As Novas Correntes Psico-analíticas

2.1. Concepções de Klein, Isaac e Segal (16) (17) (18) sobre formação de símbolos e a fantasia inconsciente como expressão mental do instinto.

Esta concepção é de fundamental importância; a partir dela, isto é, das elaborações secundárias de fantasias inconscientes é que pudemos formular a nossa hipótese sobre o mecanismo íntimo do fenômeno psicossomático.

2.2. Nas teorias das relações objetais é o objeto mau internalizado, o elemento básico para a formação do sintoma. Fairbairn (19) difere dos kleinianos porque ele aborda sob o ângulo do desenvolvimento do ego em relação aos objetos maus internalizados, enquanto que os segundos enfatizam o ângulo das angústias e suas vicissitudes que emergem do “aqui e agora”. Estas concepções foram valorizadas por Winnicott (20) com os seus objetos transicionais; Green (21,a) acha que a linguagem é a herança da primeira transição de objetos. Julgamos que o nosso conceito de “objeto tanático sentido como bom” vem concorrer, também, para melhor explicar as somatizações e distúrbios de conduta (8,i).

2.3. As concepções de Rapaport (22) sobre a “psicologia do ego”  de Martmann, Kris Loewenthal (23,a,b), Erikson (24) e Jacobson (25). Esta concepção enfatiza o ego e suas “relações de objeto” referindo-se  as relações interpessoal e meio ambiente, seguindo o princípio da realidade; seria um aspecto genético-histórico da teoria freudiana com retorno ao aspecto biológico, no que estamos de acordo com a explicação de diversos sintomas psicossomáticos.

Não há divórcio entre esta teoria e as teorias das “relações objetais” de Klein (16), Winnicott (20), Fairbairn (19) e Bion (12). Fato similar ocorre com os suportes do aparelho psíquico: os princípios freudianos (Eros X Tanatos, consciente-inconsciente) de um lado e, as posições kleinianas (esquizoparanóides e depressivas), bionianas (elementos alpha, beta e “objetos bizarros”), winnicottianos (objetos transicionais) de outro, não são antagônicos e sim complementares, é a heteronômia de Laclaire (26). Estes conceitos vieram concorrer para esclarecer vários fenômenos psicossomáticos. Daremos um exemplo para melhor compreensão.

Um paciente esquizoparanóide durante o ato sexual pensa: “o outro eu (alter ego) está praticando o coito”. Este indivíduo está dividido: uma parte do ego e não o ego todo, está funcionando devido ao medo dos objetos maus introjetados na vagina (por exemplo, a mãe sentida como má que poderá devorá-lo).

Quando partes do ego contém objetos maus, com os quais seria perigoso manter relacionamento, são utilizados estes mecanismos de defesa, o “splitting” do ego em nível corpóreo.

2.4. As concepções de Bion (12), sobre o “pensar” pensamento, as pré-concepções, a parte psicótica e não psicótica da pesonalidade, os elementos alpha e beta, reversão da perspectiva e os “objetos bizarros”, ajudaram a formulação de nossa hipótese. Elas diferem das concepções freudianas, pois acham que a percepção da realidade psíquica existe nos primórdios do desenvolvimento mental.

2.5. O conceito de Cesio (4) sobre o objeto “aletargado” que pode ser “despertado”. Vejamos dois exemplos destes dois conceitos, para compreensão da nossa hipótese: pacientes que sentem-se mal ao tomar pílulas anticoncepcionais. Estas, aumentando os níveis hormonais, em proporção discreta, não produzem somatização, como sói ocorrer com a maioria das mulheres (a curva hormonal menstrual não produz a síndrome da tensão pré-menstrual), todavia, para as mulheres neuróticas, fariam elas, as pílulas, bem como o aumento hormonal, recrudescer fantasias inconscientes latentes, através do “objeto aletargado” (4), ainda recrudesceria o poder da maldição materna, isto é, a pílula desencadearia um “estado de gravidez”, embora conscientemente não queira a gestação; a pílula desencadearia justamente a fantasia inconsciente de estar grávida, processo este explicado pelo que Bion (12) chama de “reversão da perspectiva”, e pelo conceito de “objeto bizarro”.

A nosso ver, evitar a gravidez é despertar a mãe-má sentida como “objeto bizarro”, carregado de maldição, o que ocasionaria sentimentos filicidas e medo do parto. Por este motivo, a liberação do uso de certos circuitos neurais bloqueadores (adormecidos ou aletargados), faria aparecer os sintomas de próxima gravidez, tais como: estufamento, náuseas (desejo de eliminar, inconscientemente, o feto), mastalgia e depressão (auto-castigo por culpa). A pílula somente concorreria para despertar o conflito que estaria, até então, latente, adormecido (“o objeto aletargado”).

2.6. O conceito de ego esburacado de Ammon (27) como fator genético preparatório para o mau desenvolvimento da personalidade.

2.7. O conceito de psiquísmo fetal de Rascowsky (28), sobre o qual nós nos baseamos a descrição da fase da “fetalização”, como mecanismo de defesa do ego.

2.8. O conceito de Bicudo (29) sobre a pré-concepção gynos, andros e andrógino: através dele e dos trabalhos de Mahler (30) baseamo-nos para explicar na origem dos distúrbios da identidade sexual, principalmente do transexualismo (8,f).

2.9. O conceito de Balint (31) desenvolvido por Mahler (30) nos quais salienta que os sentimentos de identidade individual repousa sobre as sensações corporais (sendo o seu núcleo a imagem do corpo e seu revestimento libidico) e refere que as experiências corporais de amamentação são os primeiros que interferem nos sentimentos de identidade (fases de simbiose, separação e de identidade bissexual, para esta última, denominamos “figura combinada”) (8,,j).

2.10. O conceito de “períodos de molde” (8,a,b,c,f,g), sendo o primeiro período, a lactação e o segundo período, o ambiente familiar, que irão moldar a futura personalidade do indivíduo.

3. As Novas Correntes Fenomenológicas

O ser humano deve ser considerado como “homem gestáltico” (o que vê, tanto a figura quanto o fundo, em relação ao mundo); não seria somente “existência” (“Vorhanden”), nem só “ser no mundo” limitado a determinado espaço e tempo (“Dasein”) da fenomenologia existencial de Heidegger e outros (32) (33) (34) (35), mas igualmente entidade mais ativa, o “estar no mundo” da “existência propriamente dita” (“Existenz”), cuja atitude seria mais ativa, dinâmica em uma unidade: o homem e o seu estar em seu mundo particular, isto é, o homem só se conquistaria a si mesmo em decisão livre, com a qual se abarcaria realizando a plenitude de seu ser (“o ser primordial é querer”, no dizer de Schelling) (36); para isto, uma das maneiras seria a de conhecer as suas fantasias inconscientes, embora esta faça surgir “a angústia existencial do não ser” (o que difere da fenomenologia de Husserl) (38). Na pessoa do presente encontra-se o seu passado e o seu vir a “estar” (não vir a ser), podendo até afundar na transcendência, na união de algo supra-mundano, como reza a filosofia oriental, principalmente o Zembudismo. Embora o homem, como todo animal, tenha um mundo ambiental, todavia, é o aspecto do seu mundo particular (que lhe é peculiar) que devemos aprofundar e nele devemos apoiar a verdadeira medicina psicossomática.

Utilizamos para este fim certos aspectos da nova corrente fenomenológica encabeçada por dois psicanalistas, com conhecimentos da fenomenologia: Boss (39,a,b) e Laing (40,a,b,c).

Boss (39) acha que devemos considerar o ser-juntos-no-mundo, isto é, sempre o que eu compartilho com os outros; o mundo do “Dasein” é o mundo-do-ser-juntos (“Mitwelt”), os objetos não podem revelar-se sem esse resplendor do homem; este não pode existir como ele é, sem a presença do todo que encontra (nem a luz física pode aparecer como luz, a menos que encontre um objeto e possa fazê-lo brilhar). O homem projeta constantemente o que pertence a sua esfera no mundo lúcido, transparente, puramente existente de objetos e o converte em uma mistura inextrincável do que é e o que parece ser. 

Na fenomenologia, o objeto imaterial (por exemplo, uma casa) penetra no indivíduo (esta casa está em mim), fica dentro do indivíduo; pela psicanálise explicar-se-ia pela identificação projetiva, com ou sem “objeto bizarro”, isto é, como réplica maldita ou como algo libidico ou agradável de intimidade. A fenomenologia reza: “quem aspira conhecer um homem deve deixá-lo de lado quanto antes” (ou o exemplo de um guia quando mostra a mesma cidade a turistas, sempre encontra novas conversações ou dimensões durante o passeio; toda a paisagem é um “estado de alma”) (34); o mesmo fato é estudado na psicanálise sob ângulo mais aplicado, tal como Bion (12) tem ensinado sobre o “não saber” para se processar um tratamento analítico, isto é, sem memória e sem desejo, no sentido de aproveitar o “aqui e agora”. Vanden Berg (34) diz: “em dez, só uma pessoa pode reconhecer a própria mão”; o mesmo que em psicossomática, ou seja, esquecer um órgão é deixá-lo funcionar bem! (o córtex “deixaria” de interferir no seu funcionamento).

Em fenomenologia o movimento em alguma parte em que tem lugar já não é o mesmo, entretanto, idêntico a si mesmo com o movimento anterior; em psicanálise, o movimento de um braço colocado na cabeça ou a encolher a perna pode estar relacionado a situação analítica, isto é, ter um significado de que o pensamento está no lugar, mas a conduta está inibida (perna, símbolo de conduta); bem similar ao que dizem os fenomenologistas: os movimentos estão sob os olhares dos críticos, isto é, sofrem crítica (é a intrusão de um indivíduo pelo outro).

A conduta se torna inteligível à luz de sua relação com a essência do ser animal considerando-se a conduta como atos intencionais. Achamos que a intencionalidade pode ser tanto consciente como inconsciente, como pode sofrer a influência do mundo existente (res-extensa). O estar no mundo é a expansão de si mesmo, é incorporar outros indivíduos por identificação projetiva ou ser submetido a eles ou perder parte de si mesmo, daí os novos conceitos de Laing (40,a) sobre a segurança ontológica primária. A pessoa ontologicamente insegura (para a qual designamos de portador de ego frágil e Ammon de ego esburacado) (27) se preocupa por preservar-se antes por gratificar-se: as circunstâncias decorrentes da vida ameaçam o seu baixo umbral de segurança (conceito similar de Arieti) (41).

Temos, como exemplo, certo esquizóide que discute ou odeia para preservar a existência, para não se sentir como “morto-vivo” (petrificado), pelo medo de amar, porque o amor dele está sempre contaminado pela destruição. Outro exemplo é o do indivíduo que se sente só na rua e não se sente só no apartamento vazio dos pais: os objetos familiares protegem a sua autonomia ontológica (por identificação projetiva e introjetiva), a fantasia incestuosa e proibida é suplantada (de forma mágica) por algo mais iminente - a necessidade de estar vivo. Para esse autor, o primeiro é buscar segurança ontológica e, segundo, a gratificação dada pelo prazer (seja ele sexual ou não, como no caso de uma mulher que saia à rua para não ter o ato sexual mas, principalmente, para ter companhia).

Existem divergências em todas estas teorias, não se pode negar, mas foram as convergências que vieram contribuir para melhor compreensão do psiquismo e da etiologia das doenças psicossomáticas e confirmar, uma vez mais, que a obra freudiana sempre foi uma tentativa de abarcar a personalidade como uma totalidade bio-psicossocial.

Para entendermos ainda a hipótese que defendemos sobre a existência de um novo conceito em psicossomática, o conceito da estidade, da univocidade ou escotismo psicossomática, conceito que faz o indivíduo ser ele mesmo e não o outro, e sem o qual deixa de ser ele mesmo (individuação ou diferença individual*) precisamos nos ater ao estruturalismo, principalmente sob este ângulo, focalizando o “objeto mau internalizado”, causador de inúmeras doenças psicossomáticas. Sem esta abordagem será difícil entender este novo conceito de estidade.

* Individuação é relativo a este conceito com certa diferença do conceito de Jung (42), (individuação é a maturidade do indivíduo quando o consciente e o inconsciente se harmonizam, aprendendo um a viver com o outro) e de individualização (ato ou efeito de individualizar).

4. Novas Correntes do Estruturalismo

O termo estrutura tem duas perspectivas: uma semântica, referindo-se aos conteúdos manifestos, e outra personalógica, na qual o sistema psíquico é formado por sub-estruturas. Segundo os conceitos do estruturalismo (43)(44)(45)(46)(47)(48)(49), fatos isolados parecem idênticos, mas postos em campo que os produziram, revelam-se diametralmente opostos. Sirva de exemplo a distinção entre “cheese”, “fromage” e “queijo”. Aparentemente são a mesma coisa. No entanto, pelas diferenças de estrutura da alimentação inglesa, da francesa e da brasileira, são diversas. Por outro lado, objetos aparentemente diversos mostram-se semelhantes quando objetivados pelo estruturalismo. Vem a próposito o que sucedeu com o “Homem dos Lobos” de Freud (13,b); diante de: lobo branco, borboleta, número V, mulher de cócoras, etc., ele reiterava os mesmos atos compulsivos. Vistos pelo vértice do estruturalismo, o objeto mau está inserido em um sistema de relações mutáveis.

Os efeitos dos objetos maus variam com as mudanças do sistema de relações. Assim, os estrogênios na quantidade até 700 pg/ml, não produzem sintomas de tensão pré-menstrual, mas em mulheres sob efeito de conflitos inconscientes com a figura materna, essa quantidade poderá desencadear a Síndrome da Tensão Pré-menstrual (8,k,l). O sentido e o valor dos objetos maus dependem das fantasias inconscientes, entendidas estas

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